Apesar dos avanços nas políticas públicas de fomento à cultura e do aumento na participação feminina no setor audiovisual, a direção de filmes de grande alcance no Brasil continua majoritariamente nas mãos de homens. Um levantamento do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa), com dados de 1995 a 2022, revela que nenhuma mulher dirigiu filmes voltados ao grande público em 2022. A análise é reforçada por dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine) e do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), que apontam que apenas 20,9% dos filmes nacionais de maior público e renda, de 2019 a 2023, tiveram direção feminina.
Em meio ao mês de março — quando se celebra o Dia Internacional da Mulher — e à realização do Oscar, um dos eventos mais importantes do cinema mundial, o contraste entre o brilho das atrizes no tapete vermelho e a baixa presença de mulheres na direção se torna ainda mais evidente.
A coordenadora do Cineclube da Luluzinha, produtora e atriz Ana Azevedo, avalia que ainda é raro ver mulheres ocupando os cargos centrais das produções, como direção, roteiro e produção executiva. “Quando se pensa em direção, ainda se imagina a figura do homem branco, de cabelos grisalhos. Isso revela como o imaginário coletivo é moldado por um sistema estruturalmente machista”, afirma.
Para Azevedo, essa hegemonia masculina impede a pluralidade de narrativas e sustenta a produção de filmes com enredos que reproduzem padrões machistas, racistas e misóginos. “Sem a presença feminina, as histórias continuam sendo contadas sob uma única ótica”, avalia.
A disparidade na direção cinematográfica não é exclusividade brasileira. Nos Estados Unidos, uma pesquisa do Centro de Estudos das Mulheres na Televisão e no Cinema da Universidade Estadual de San Diego mostra que, entre os 250 filmes de maior bilheteria em 2023, apenas 16% foram dirigidos por mulheres — percentual inferior aos 18% registrados no ano anterior. A principal exceção foi o filme “Barbie”, de Greta Gerwig, que arrecadou US$ 1,44 bilhão, tornando-se a maior bilheteria do ano.
A fotógrafa e documentarista Amanda Costa, cofundadora do Coletivo Diaspórica, observa que a exclusão feminina na direção vem desde os primórdios do cinema. Ela cita a cineasta Alice Guy-Blaché, que dirigia filmes de ficção ainda no século XIX, mas permanece desconhecida frente à fama dos irmãos Lumière. “A história do cinema sempre exaltou os homens, apagando as mulheres que também contribuíram com o início dessa arte”, afirma.
Amanda reforça que os estereótipos de gênero ainda associam os papéis de liderança, como direção e produção, ao masculino. “Apesar de termos mais mulheres no audiovisual, os cargos de decisão continuam sendo ocupados por homens”, diz.
A técnica de som e sound designer Cindy Faria defende que editais afirmativos são fundamentais para ampliar a participação feminina na cadeia produtiva do cinema. “Esses editais geram oportunidades de trabalho e criam mais espaço para que as obras sejam produzidas e exibidas”, pontua.
Ela também alerta para a necessidade de políticas antiassédio nos sets de filmagem e destaca que a representatividade deve ir além do conteúdo das produções. “Não basta termos personagens femininas. É preciso garantir que as mulheres estejam atrás das câmeras, construindo as histórias”, afirma.
O censo do IBGE de 2022 aponta que as mulheres representam 51,5% da população brasileira. No entanto, essa maioria não se reflete nas salas de cinema, onde apenas cerca de 1 em cada 5 filmes de grande alcance tem uma mulher na direção. Para mudar esse cenário, Ana Azevedo destaca a importância das leis de incentivo à cultura, como a Paulo Gustavo e a Política Nacional Aldir Blanc. “São esses mecanismos que permitem montar equipes com maior diversidade e construir ambientes de trabalho mais justos e respeitosos”, afirma.
A produção audiovisual “Diaspóricas” é exemplo de como políticas públicas podem fortalecer a presença de mulheres no setor. Com uma equipe de 25 profissionais, sendo 23 mulheres negras, o projeto busca preencher lacunas estruturais do mercado e promover geração de renda entre produtoras e empreendedoras culturais.
A sub-representação feminina na direção de filmes é ainda mais grave quando se considera o recorte racial. Segundo o Gemaa, apenas dois filmes com ampla distribuição foram dirigidos por homens negros em 2022: Medida Provisória, de Lázaro Ramos, e Marte Um, de Gabriel Martins — este último, financiado por um edital afirmativo.
Para Amanda Costa, a ausência de mulheres negras na direção se deve ao racismo estrutural que marca o setor. “A indústria ainda privilegia a visão do homem branco e exclui narrativas que fogem desse padrão. Isso limita o conteúdo produzido e perpetua desigualdades históricas”, afirma.
Cindy Faria também aponta que, diante dessa realidade, é fundamental que as mulheres negras aprendam a contar suas próprias histórias. “Narrar a si mesma é um ato de resistência. Quando fazemos isso juntas, com apoio mútuo, conseguimos construir caminhos mais sólidos para ocuparmos os espaços que nos foram negados”, conclui.